Comentário ao Evangelho - IX Domingo Comum
Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias
Lucas 7, 1 -10
Naquele tempo, quando acabou de falar ao povo que o escutava, Jesus entrou em Cafarnaum. Havia lá um oficial romano que tinha um empregado a quem estimava muito, e que estava doente, à beira da morte. O oficial ouviu falar de Jesus e enviou alguns anciãos dos judeus, para pedirem que Jesus viesse salvar seu empregado. Chegando onde Jesus estava, pediram-lhe com insistência: “O oficial merece que lhe faças este favor, porque ele estima o nosso povo. Ele até nos construiu uma sinagoga”. Então Jesus pôs-se a caminho com eles. Porém, quando já estava perto da casa, o oficial mandou alguns amigos dizerem a Jesus: “Senhor, não te incomodes, pois não sou digno de que entres em minha casa. Nem mesmo me achei digno de ir pessoalmente a teu encontro. Mas ordena com a tua palavra, e o meu empregado ficará curado. Eu também estou debaixo de autoridade, mas tenho soldados que obedecem às minhas ordens. Se ordeno a um: ‘Vai!’, ele vai; e a outro: ‘Vem!’, ele vem e ao meu empregado ‘Faze isto!’, e ele o faz”. Ouvindo isso, Jesus ficou admirado. Virou-se para a multidão que o seguia, e disse: “Eu vos declaro que nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé”.1 Os mensageiros voltaram para a casa do oficial e encontraram o empregado em perfeita saúde.
Laus tibi Christe!
Nosso Senhor Jesus cristo pode e quer nos auxiliar em todas as nossas necessidades. Mas Ele condiciona a manifestação de sua onipotência misericordiosa à intensidade de nossa fé.
I - O VERBO DIVINO É ONIPOTENTE
Pelo semblante se conhece um homem; pelo aspecto do rosto se reconhece o sábio. A maneira como um homem se veste e como sorri, e a sua maneira de andar revelam aquilo que ele é”, observa o Eclesiástico (19, 26-27), transformando em máxima esse curioso matiz do relacionamento social. De fato, observar o exterior de uma pessoa leva-nos a melhor conhecê-la, pois algo da própria personalidade transparece tanto através da constituição física do corpo, quanto por meio de suas reações temperamentais.
Assim, embora o homem não veja o que se passa no interior de seu semelhante, pode discerni-lo pelas manifestações exteriores. Tal capacidade de percepção ocupa importante papel na vida em sociedade, pois, permitindo ao homem formar uma noção mais completa a respeito de seu próximo, propicia certa facilidade de mútua compreensão e adaptação, fatores indispensáveis para uma boa convivência.
Não obstante, essa regra teve uma singular exceção na História: Nosso Senhor Jesus Cristo. Sem dúvida, seu semblante e modo de ser denotavam, de forma indiscutível, um caráter superior. No aspecto físico não havia a mínima incorreção; dos gestos e do olhar emanavam nobreza e sublimidade, além de uma irresistível força de atração sobre quem O contemplasse, mesmo por poucos instantes. Contudo, por mais extraordinária que fosse a compleição de Jesus — a qual refletia sua perfeitíssima alma humana —, ela não evidenciava sua personalidade divina. E essa foi a prova de todos os que d’Ele se aproximaram durante os 33 anos de sua vida mortal: crer na divindade d’Aquele Mestre “exteriormente reconhecido como homem” (Fl 2, 7).
Com efeito, se o Verbo Se apresentasse em toda a magnificência de sua personalidade, ninguém cogitaria ser Aquele o “filho do carpinteiro”, e todos — até os que se recusassem a aceitá-Lo — seriam obrigados, pela força da evidência, a ver n’Ele o próprio Deus. Entretanto, além dos outros efeitos da sua vinda ao mundo, Deus quis dar aos homens o mérito da fé diante do mistério da Encarnação. Para tal, assumiu totalmente nossa débil natureza, à exceção do pecado, sujeitando-Se à fome (cf. Mt 4, 2), à fadiga (cf. Jo 4, 6), à sede (cf. Jo 4, 7) e ao sono (cf. Mc 4, 38).
Sendo patente que Nosso Senhor era verdadeiro homem, fazia-se necessário demonstrar que Ele era também verdadeiro Deus. Foi o que fez durante sua vida pública, ensinando com autoridade e operando milagres. Estes revelavam de modo inequívoco sua divindade, quer confirmando a veracidade da doutrina — a qual continha revelações acerca de sua origem divina —, quer por serem feitos por sua própria virtude, ou ainda porque transcendiam todo o poder criado.
A onipotência manifestada ao operar os milagres é um atributo próprio de Deus, intransferível a qualquer criatura, inclusive à humanidade de Cristo. Portanto, ao usar os predicados humanos para suspender as leis da natureza — por exemplo, tocando o leproso e dizendo-lhe: “Eu quero, sê curado!” (Mt 8, 3) —, Jesus mostrava a realidade de sua Encarnação, na qual, conforme ensina São Tomás, “a natureza humana é instrumento da ação divina, e a ação humana recebe poder da natureza divina”.
Daí decorre que, presenciando um só milagre, até mesmo os que recusavam seus ensinamentos não tinham mais motivos para duvidar de seu poder divino, como declarou o próprio Re dentor: “Se eu não faço as obras de meu Pai, não me creiais. Mas se as faço, e se não quiserdes crer em mim, crede nas minhas obras, para que saibais e reconheçais que o Pai está em mim e eu no Pai” (Jo 10, 37-38).
As páginas do Evangelho guardam numerosas passagens nas quais reluz essa onipotência do Homem-Deus. O IX Domingo do Tempo Comum traz à nossa consideração uma delas, realçando a nossos olhos a figura de um pagão cuja fé é elogiada pelo próprio Jesus.
II - PRENÚNCIO DA CONVERSÃO DOS GENTIOS
Pouco antes de se dirigir à cidade, Nosso Senhor concluíra uma de suas mais belas pregações, a qual tivera por prefácio as bem-aventuranças. Desde o oferecer a outra face ao agressor e emprestar sem exigir devolução, até o surpreendente “amai os vossos inimigos” (Le 6, 27), o sermão deixara consignada a nova perspectiva de relacionamento social trazida por Cristo, a qual estendia a um âmbito universal o amor, então circunscrito aos limites da reciprocidade. São Lucas registra este discurso como antecedente imediato do episódio contemplado no Evangelho de hoje, visando mostrar como Jesus confirma tal doutrina com o exemplo de sua própria conduta.
Havia lá um oficial romano que tinha um empregado a quem estimava muito, e que estava doente, à beira da morte.
São Mateus, narrando este mesmo fato, precisa a categoria do oficial: é chefe de uma centúria, subdivisão inferior da infantaria romana, correspondente à sexagésima parte de uma legião. Devido às vastidões do Império, as legiões eram enviadas a regiões estratégicas. Na Palestina, havia centúrias estacionadas em locais como Cafarnaum — por estar situada na fronteira norte da Galileia. Se houvesse necessidade, recebiam reforço de outras unidades que se encontrassem próximas.
Embora pagãos, os centuriões gozavam de grande popularidade entre os judeus, por serem tidos por militares bem conceituados, capazes e experientes na arte da guerra, além de respeitados por sua autoridade, O centurião deste episódio do Evangelho desfrutava de todas essas prerrogativas. Estando a serviço do tetrarca Herodes Antipas, comandava uma das poucas guarnições estacionadas na província, e ali era considerado uma figura importante.
Já de início, um detalhe desperta a atenção e nos faz compreender melhor o significado desse primeiro milagre realizado em favor dos gentios: a sensibilidade do oficial em relação a seu escravo,3 atitude incomum na sociedade da época, regida pelo Direito Romano, o qual considerava o escravo como res — coisa. Segundo Fillion, tal compaixão era algo “muito raro entre romanos e gregos, que, em geral, tratavam seus escravos com enorme desprezo e dureza, chegando frequentemente à crueldade”. Além de revelar uma natural retidão de alma, esse indício dos “nobres sentimentos de humanidade” que animavam o centurião deixa transparecer quanto suas disposições consonavam com os ensinamentos preceituados havia pouco por Cristo.
Fé na divindade Jesus
O oficial ouviu falar de Jesus e enviou alguns anciãos dos judeus, para pedirem que Jesus viesse salvar seu empregado.
A fama de Nosso Senhor corria “por todos os lugares da circunvizinhança” (Lc 4, 37), escreve o Evangelista, logo após a narração da cura de um possesso em Cafarnaum. E a notícia chegou também aos ouvidos do centurião. Certamente, entre os relatos acerca d’Aquele homem extraordinário, contaram-lhe os numerosos milagres operados em benefício dos enfermos. Foi o suficiente para o oficial encher-se de confiança: aquele Mestre dos judeus poderia restabelecer a saúde de seu empregado! Nesse instante, sem o saber, deu seu primeiro assentimento à graça da fé na divindade de Jesus, crendo de imediato na onipotência d’Ele, como sublinha Santo Ambrósio: “Conjecturou que Cristo dava a saúde aos homens não com poder de homem, mas de Deus”.
Talvez por considerar-se indigno de ser atendido por um homem célebre entre os próprios judeus — os quais procuravam manifestar de modo categórico sua eleição divina e, como consequência desta, sua superioridade em relação aos gentios —, o centurião pediu aos anciãos da cidade que apresentassem sua súplica a Jesus, em favor de seu servo.
Atraído pelo Deus verdadeiro
Chegando onde Jesus estava, pediram-lhe com insistência: “O oficial merece que lhe faças este favo porque ele estima o nosso povo. Ele até nos construiu uma sinagoga.
Um oficial romano geralmente era bem abastado, pois, além da remuneração própria ao cargo, cabia-lhe a maior parte dos despojos obtidos na guerra. A largueza de posses do centurião de Cafarnaum é comprovada pelo fato de ter construído uma sinagoga, gesto que propiciou o sentimento de gratidão do povo pelo benfeitor da religião, dada a importância dedicada ao culto por todo israelita.
Os anciãos não hesitaram, então, em interceder por ele junto ao Mestre. No entanto, pelo modo de apresentar o pedido, podemos perceber como os ensinamentos de Nosso Senhor ainda não lhes haviam penetrado a mentalidade, pois dizem que o centurião “merece” o milagre por estimar o povo judeu e ter-lhe feito um benefício. Portanto, estavam convencidos de que Deus favorecia quem, através de atitudes exteriores, se mostrava digno de ser por Ele agraciado, dentro da antiga lei da mera reciprocidade. O milagre se lhes afigurava mais como uma recompensa do que como uma misericórdia divina, e o Salvador lhes mostrará quão equivocada era tal concepção.
De outro lado, vemos quanto esse oficial se mostrava simpático à religião verdadeira, sendo provavelmente “um daqueles pagãos aos quais já não satisfaziam os mitos politeístas, cuja fome religiosa não se saciava com a sabedoria dos filósofos e que, por conseguinte, simpatizava com o monoteísmo judaico e com a moral que dele derivava. Era temente a Deus, professava a fé no Deus único, participava do culto judaico, mas ainda não havia passado definitivamente ao judaísmo. Todavia, buscava a salvação de Deus. Manifestava sua fé no Deus único, seu amor e seu temor a Deus no amor ao povo de Deus e na solicitude pela sinagoga que ele mesmo havia edificado. Seus sentimentos se expressavam em obras”.
De fato, a abertura dos gentios em relação ao judaísmo era fenômeno frequente nesse período histórico em que diversos povos se encontravam aglutinados sob o jugo de Roma. Tal situação favorecia as relações entre judeus e gentios, trazendo como consequência que um considerável contingente de pagãos vivia à maneira judaica, adotando muitos costumes hebreus, como descreve Flávio Josefo: “Vários outros povos também há muito tempo ficaram tão impressionados pela nossa piedade, que não há cidade grega, nem bárbaros, onde não se deixe de trabalhar no sétimo dia, onde não se acendam lâmpadas e onde não se façam jejuns”.
Encontrando-se em circunstâncias de tal modo oportunas, boa parte dos judeus não hesitava em fazer proselitismo, seguindo o conselho do velho Tobias: “Se Ele vos dispersou entre os povos que não O conhecem, foi para que publiqueis as suas maravilhas e lhes façais reconhecer que não há outro Deus onipotente senão Ele” (Th 13, 4). No parecer de Fillion, o centurião era um dos chamados “prosélitos da porta”, ou seja, “chegado até o umbral dessa religião superior, na qual não se entrava definitivamente senão com a condição de fazer-se circuncidar e praticar integralmente a Lei de Moisés”.
Eficácia da mediação e da humildade
Nosso Senhor toma a iniciativa de ir até a casa do oficial, expressando desse modo, seu agrado diante de atitude tão confiante. Repete-se, no caso, uma peculiaridade que já havia movido Jesus a realizar outros milagres, como a cura da sogra de Pedro (cf. Lc 4, 38-39), ou o restabelecimento e perdão dos pecados do paralítico descido pela abertura de um teto (cf. Mc 2, 3-5): o Salvador não exige dos enfermos a manifestação do desejo de serem curados, bastando-Lhe a fé dos intercessores.
Porém, quando já estava perto da casa, o oficial mandou alguns amigos dizerem a Jesus: “Senhor, não te incomodes, pois não sou digno de que entres em minha casa. Nem mesmo me achei digno de ir pessoalmente a teu encontro”.
O oficial sabia ser proibido na Lei de Moisés que um judeu entrasse nas casas dos pagãos, sob pena de tornar-se impuro quem o fizesse. Preocupado com os ritos de purificação aos quais obrigaria a passar o Mestre, após visitá-lo, e, sobretudo, por julgar que tal condescendência sobrepujava em muito sua indignidade de pagão, enviou-Lhe uma mensagem com o objetivo de poupá-Lo de tal constrangimento.
Cabe-nos aqui analisar essa atitude de humildade: contrastando com o conceito positivo que os anciãos e todo o povo da cidade tinham a respeito de sua pessoa, o centurião dá provas de uma equilibrada apreciação de seus próprios predicados, declarando sua pequenez diante da grandeza de Cristo. Sem dúvida, essa atitude submissa da parte de um personagem cujo poderio inspirava temor causou considerável impressão na multidão.
Uma oração simples, mas cheia de fé
“Mas ordena com a tua palavra, e o meu empregado ficará curado. Eu também estou debaixo de autoridade, mas tenho soldados que obedecem às minhas ordens. Se ordeno a um: ‘Vai!’, ele vai; e a outro: Vem!’, ele vem; e ao meu empregado ‘Faze isto!’, e ele o faz”.
Por sua formação militar, o centurião apreciava muito a hierarquia. Por isso, “primeiro recorda que está subordinado e depois que tem outros abaixo de si”, pondera Santo Agostinho. Novamente o oficial mostra ter uma clara noção de seu pouco valor pessoal, como também do valor dos outros, consciente de que diante de autoridades superiores qualquer poder de mando se converte em obrigação de obedecer.
São Lucas registra com precisão o modo peculiar de fazer a súplica, usando o termo “ordena”. Acostumado à disciplina, o centurião conhecia o poder de uma ordem, sobretudo no exército romano, cujo rigor prescrevia a pena capital aos insubordinados. Tal intransigência disciplinar havia criado um reflexo em sua alma, levando-o a reagir no campo sobrenatural, ao lhe ser infundida a fé, de acordo com o treinamento militar. Pois, do mesmo modo que uma única ordem era suficiente para mobilizar seus soldados sem a necessidade da presença física do comandante, ele cria bastar uma só palavra do Mestre para tudo se resolver. Comentando essa característica singular do pedido, afirma Fillion: “Sob esta linguagem direta, totalmente militar, havia uma fé e uma humildade admiráveis. O centurião supunha com acerto que Nosso Senhor era o dono de todas as forças da natureza, e podia lhes dar ordens quando quisesse”.’
A certeza da eficácia da palavra de Jesus é prova de uma vigorosa fé na divindade d’Ele, segundo a interpretação dada por Santo Agostinho ao pedido: “Se eu, que estou subordinado, mando nos que estão debaixo de mim, tu, que não estás subordinado a ninguém, não poderás mandar em tua criatura, uma vez que todas as coisas foram feitas por ti e sem ti nada foi feito?”. Também a simplicidade do oficial ao apresentar o problema a Nosso Senhor é reveladora de uma fé “desinteressada, genuína, absoluta e humilde”. Acreditava depender tudo da vontade do Salvador, bastando transmitir-Lhe seu pedido para obter a realização. Esse insigne ato de fé não ficaria sem prêmio.
A fé de um pagão causa admiração ao Homem-Deus
Ouvindo isso, Jesus ficou admirado. Virou-se para a multidão que o seguia. e disse: “Eu vos declaro que nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé”.
A fé, virtude infundida por Deus na alma, é um dom gratuito que não depende do esforço humano para ser adquirida. Ora, neste versículo Jesus se encanta ao constatar, enquanto homem, a fé que Ele próprio, enquanto Deus, dera àquele pagão. Como explica o Cardeal Gomá y Tomás, “a fé do centurião não foi uma novidade para Ele, que penetra os corações, mas o conhecimento experimental que Lhe trouxe, ‘assim como o astrônomo fica admirado ao ver o eclipse, que já conhecia em teoria’; [tal fato se nota] pela expressão e gesto com que recebeu a confissão do gentio, porque era algo digno de admiração”.’14 Portanto, Ele fica admirado para dar-nos “a entender que nós é que nos devemos admirar”, esclarece São Beda.
E, virando-se para a multidão, o Mestre faz uma declaração que certamente deixou a muitos desconcertados: um pagão superara os judeus... por causa de sua fé! De fato, numerosos israelitas haviam presenciado os milagres operados pelo Salvador e ouvido diretamente dos lábios d’Ele um ensinamento novo dotado de potência (cf. Mc 1, 27). Contudo, não houve entre esses quem tivesse fé tão excelente quanto aquele gentio. “O centurião havia entendido por divina inspiração o que Jesus se esforçava, em vão, por fazer entender a seus contemporâneos: que n’Ele estava o próprio Pai, que se manifestava e atuava”,comenta o padre Cantalamessa. Por isso, a afirmação de Cristo nessa passagem anuncia que, por desígnio da Providência, a verdadeira religião havia ultrapassado os limites aos quais estivera restrita, no Antigo Testamento, e que, no novo regime da graça, inaugurado com a Encarnação, ela se estenderia a todos os povos da Terra.
Um milagre, tal como foi pedido
Santo Ambrósio vê no empregado outro simbolismo do caráter universal da salvação: “No sentido místico, o servo do centurião representa o povo das nações que, retido pelas correntes da escravidão do mundo e enfermo de paixões mortais, devia ser curado pela graça do Senhor”.
Este último versículo traz um singular pormenor, próprio aos conhecimentos médicos de São Lucas. Ás vezes, através da oração e do oferecimento de sacrifícios, os sacerdotes do Templo obtinham a recuperação da saúde dos enfermos; porém não conseguiam livrá-los de todas as sequelas da doença. Por tal razão, o Evangelista teve o cuidado de registrar que o empregado ficou totalmente são — “em perfeita saúde” —, sem nenhum vestígio da moléstia, sinal inconfundível das curas operadas pelo Divino Médico.
A oração do centurião estava atendida: O Senhor não foi à sua casa, mas a cura do Senhor sim; o Salvador não visitou o enfermo, mas a cura do Senhor o visitou”, conclui São Máximo de Turim.
O que havia determinado a realização do pedido? A benevolência pelo próximo, a generosidade, a retidão ou quiçá a humildade, virtudes das quais o centurião deu provas tão robustas? Todos esses fatores foram importantes, apesar de não terem sido essenciais. O elemento indispensável — a fé — foi o único elogiado pelo Mestre: “Eu vos declaro que nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé!”.
III - APESAR DE INDIGNOS, JESUS VEM A NÓS
O exemplo do centurião põe em relevo algo simples, cuja imensa eficácia muitas vezes passa despercebida aos nossos olhos: a oração cheia de fé. Sua força impetratória é tal que nos faz participar da própria onipotência divina, como afirma Jesus: “Tudo o que pedirdes com fé na oração, vós o recebereis” (Mt 21, 22).
Portanto, devemos nos compenetrar da necessidade de nos dirigirmos a Nosso Senhor em nossas dificuldades — tanto espirituais, quanto temporais —, com a certeza de que nossa fé moverá sua infinita misericórdia a nos atender. E assim como a gentilidade não foi motivo para o centurião recear ser ouvido por Cristo, nossa confiança em sua ação deve passar por cima das nossas próprias insuficiências, certos de que diante d’Ele não é preciso merecer, mas apenas pedir com fé.
Imortalizada pelo Evangelho e recolhida pela Liturgia da Igreja a fim de predispor convenientemente todos aqueles que vão receber a comunhão eucarística, a prece do centurião atravessou os séculos como modelo de perfeita atitude de alma de um fiel, ao encontrar-se diante do Salvador: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo”. Entretanto, há uma substancial diferença entre a oração dirigida a Jesus em Cafarnaum e a que se eleva a Ele em todos os recantos do mundo, junto ao altar: nos lábios do centurião, expressava o desejo de uma alma que, crendo de modo extraordinário no poder d’Ele e julgando-se indigna de recebê-Lo, pedia-Lhe que não fosse à sua casa, curando seu servo à distância. Ao brotar de nosso coração católico, a mesma súplica também confessa a indignidade de receber a Cristo; não obstante, implora, ao mesmo tempo, que Ele venha à nossa alma e, nessa visita, nos diga uma palavra interior que cure nossas misérias e nos restaure inteiramente.
Se Ele, sem ter entrado na casa do oficial, atendeu àquele pedido confiante, que milagres seu Sagrado Coração não anseia fazer por nós, ao vir à nossa alma na Eucaristia? Para tal, Ele nos pede apenas que confiemos de modo incondicional em sua onipotência, cujos efeitos tanto mais se manifestarão em nós quanto maior for nossa fé.
Inédito sobre os Evangelhos - Volume VI
Ano C - Tempo Comum