Comentário ao Evangelho do X Domingo Comum
Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias
Lc 7, 11-17
“Naquele tempo, Jesus dirigiu-Se a uma cidade chamada Naim. Com ele iam seus discípulos e uma grande multidão. Quando chegou à porta da cidade, eis que levavam um defunto, filho único; e sua mãe era viúva. Grande multidão da cidade a acompanhava. Ao vê-la, o Senhor sentiu compaixão para com ela e lhe disse: ‘Não chore!’. Aproximou-Se, tocou o caixão, e os que o carregavam pararam. Então, Jesus disse: ‘Jovem, eu te ordeno, levanta-te!’. O que estava morto sentou-se e começou a falar. E Jesus o entregou à sua mãe. Todos ficaram com muito medo e glorificavam a Deus, dizendo: ‘Um grande profeta apareceu entre nós e Deus veio visitar o seu povo’. E a notícia do fato espalhou-se pela Judeia inteira e por toda a redondeza”.
Laus tibi Christe!
Para fazer milagres, Jesus exigia uma prova de fé do favorecido. Mas as vezes, era Ele quase adiantava a qualquer pedido e distribuía seus divinos benefícios. Esse modo de agir encerra em si um profundo significado
O CHOQUE DAS GRANDES CONVERSÕES
Na História da Igreja é frequente encontrarmos situações nas quais um apóstolo, inspirado por Deus, deseja a conversão de alguma alma afastada da Religião. Entretanto, muitas vezes seu ardor se vê coarctado pela negativa de quem é objeto de seu zelo. Todos os esforços se revelam inúteis, pois a argumentação não logra dobrar uma vontade obstinada.
Afonso Ratisbonne, por exemplo, era um israelita de raça e religião, profundamente enraizado em suas tradições. Seu amigo, o Barão de Bussières, movido por uma moção interior da graça, usou dos mais convincentes recursos da apologética para tentar convertê-lo à Igreja Católica, sem obter sucesso. Aferrado às próprias convicções e mais preocupado em gozar das delícias da vida que o futuro lhe oferecia, Afonso aceitou apenas levar ao pescoço uma medalha de Nossa Senhora das Graças, com a promessa, a contragosto, de recitar todos os dias o Memorare — o “Lembrai-Vos”, a conhecida oração de São Bernardo. “Eu não podia me dar conta” — narraria mais tarde o Barão de Bussières — “da força interior que me impelia, a qual, a despeito de todos os obstáculos e da obstinada indiferença oposta por ele a meus esforços, dava-me uma convicção íntima, inexplicável de que, cedo ou tarde, Deus lhe abriria os olhos”.
Alguns dias depois, ambos entraram na igreja de Sant’Andrea delle Fratte, em Roma. O Barão dirigiu-se à sacristia, para tratar de um assunto, enquanto o jovem Afonso permaneceu só na igreja, analisando as obras de arte ali existentes. De repente, em um altar lateral, apareceu-lhe a Santíssima Virgem, tal como na medalha, e sem nada dizer operou instantaneamente sua conversão radical: “Ela não me falou, mas eu compreendi tudo!”, exclamava ele, depois, com verdadeiros arroubos de entusiasmo. Com efeito, a fé católica fora-lhe implantada no coração de modo inexplicável; o jovem israelita passou a falar dos mistérios e dos dogmas da Religião como se os conhecesse e os amasse desde sempre. Bastara apenas um olhar de Maria para transformar sua alma!
A ação da graça eficaz
Não nos iludamos, portanto, ao constatar a conversão de uma alma, julgando que ela se deveu à argumentação racional feita por quem se propunha atraí-la, ou a uma exposição teológica que, entremeada de exemplos adequados e desenvolvidos de forma brilhante, arrebatou o ouvinte, levando-o a uma mudança de vida. Se a iniciativa de conceder uma graça eficaz — isto é, aquela que produz seu efeito sempre, de modo infalível — não partir de Deus, podem ser empregados todos os recursos da inteligência humana, as demonstrações mais convincentes ou os silogismos mais irrefutáveis, que não se logrará mover a alma nem um passo sequer na direção do bem. O eminente teólogo dominicano, padre Antonio Royo Marín, explica que, “sem a graça atual ou auxílio sobrenatural de Deus, a alma em graça e, ainda com maior razão, o pobre pecador, não podem fazer absolutamente nada na ordem sobrenatural. O pecador não pode arrepender-se de maneira suficiente para recuperar a graça se Deus não lhe concede previamente a graça atual do arrependimento”.
De fato, a ação de Deus sobre as almas é muito variada. Não depende ela da lucidez, da lógica ou da capacidade oratória do apóstolo, não depende dos méritos deste, nem de quem a recebe, não depende sequer, como condição absoluta, das orações que outros façam intercedendo por elas, embora a prece em favor do próximo possua grande audiência diante de Deus. A conversão, portanto, obedece a uma iniciativa de Deus, conforme ensina São Tomás: “Que o homem se converta a Deus não pode ocorrer senão sob o impulso do próprio Deus que o converte. [...] A conversão do homem a Deus é, certamente, obra do livre-arbítrio. Por isso, precisamente, manda-lhe que se converta. Mas o livre-arbítrio não pode voltar-se a Deus, se o próprio Deus não o converte a si”.
Tal impulso divino, que com frequência incide “não só [sobre os] que carecem totalmente de bons méritos, como também [sobre aqueles cujos] méritos maus vão adiante”, é-nos ilustrado de forma cogente no Evangelho proposto na Liturgia do 10º Domingo do Tempo Comum.
A COMPASSIVA INICIATIVA DE NOSSO SENHOR
“Naquele tempo, Jesus dirigiu-Se a uma cidade chamada Naim. Com ele iam seus discípulos e uma grande multidão”.
Naim era uma pequena cidade da Galileia, situada sobre uma elevação, na encosta do Pequeno Hermon, a doze quilômetros de distância de Nazaré e a 38 quilômetros de Cafarnaum. Seu nome — que significa “a graciosa” — provinha do belo panorama descortinado à sua frente, compreendendo a fértil planície de Esdrelon, as montanhas de Nazaré e o imponente monte Tabor. Como a maioria das cidades da Palestina naquela época, possuía muralhas de defesa para evitar saques e invasões. O acesso ao casario se fazia por uma estrada ascensional que conduzia até a porta da cidade, provavelmente estreita, dificultando a entrada e a saída, em caso de se formarem grandes aglomerações de pessoas.
O providencial encontro de duas multidões
“Quando chegou à porta da cidade, eis que levavam um defunto, filho único; e sua mãe era viúva. Grande multidão da cidade a acompanhava”.
Diante desse quadro, podemos imaginar o impacto causado pela chegada de Nosso Senhor, que subia à cidade seguido de uma grande multidão, ao encontrar-Se com outra comitiva numerosa, constituída pelos habitantes, que descia pela estrada levando para enterrar o filho único de uma viúva. Segundo a praxe judaica, quem cruzasse com um cortejo fúnebre deveria parar e acompanhá-lo. Jesus, amante e cumpridor das leis, deteve-Se diante do defunto e, devido à estreiteza do caminho, quiçá tenha até mesmo se colocado de lado para permitir a passagem do féretro.
Naqueles tempos, a morte de um filho único constituía para uma viúva a desaparição de seu esteio. A partir desse momento, ela e suas possíveis propriedades ficavam à mercê da rapina geral — abuso denunciado por Jesus mais adiante, em sua censura aos escribas (cf. Lc 20, 47; Mc 12, 40). Com efeito, não faltava quem se regozijasse em tais circunstâncias, porque das viúvas podiam arrancar tudo quanto elas possuíam, sem oposição de ninguém, como aponta São João Crisóstomo: “E o pior era que não enchiam seus ventres dos bens dos ricos, mas da miséria das viúvas, agravando uma pobreza que deveriam socorrer”.9 Situação semelhante nos é apontada pelo próprio Cristo na parábola do juiz iníquo (cf. Lc 18, 1-8), revelando esse crime que não era estranho aos ouvidos do tempo.
Nosso Senhor toma a iniciativa sem prévio pedido
“Ao vê-la, o Senhor sentiu compaixão para com ela e lhe disse: ‘Não chore!’”.
Na maior parte dos milagres realizados pelo Divino Mestre — como, por exemplo, o do servo do centurião, contemplado na Liturgia do domingo anterior —, a iniciativa partia do necessitado que, cheio de fé, pedia auxílio, sendo atendido por Nosso Senhor.
Neste caso, pelo contrário, algo diferente aconteceu: o próprio Jesus toma a iniciativa. Ele, enquanto Deus, considerara aquela família desde toda a eternidade e, através do conhecimento de sua alma humana na visão beatífica, conhecia-a também perfeitamente, bem como a difícil conjuntura em que se encontrava. Contudo, seus olhos materiais e sua ciência experimental só nesse momento a constataram.
A cena de uma mãe desolada, atingida pela perda de quem era seu apoio e sustento, ficando sozinha no mundo, era por demais comovedora. “Sobre aquela cabeça querida, ela havia reunido todos os afetos e todas as esperanças de seu coração. Ela o educava como uma viúva sabe educar um filho único. Podemos afirmar: sua alma e sua vida gravitavam em torno dessa existência. E eis que, de repente, se rompe o fio ao qual estava suspensa a única felicidade que ela podia experimentar sobre a Terra. Eis que a morte arranca aos abraços desesperados de sua mãe o menino amadurecido, no momento em que ele aparecia como uma força e como uma proteção”.
Por isso, tomou-Se Jesus de dor e compaixão para com a pobre senhora e, dirigindo-Se primeiramente a ela, disse-lhe: “Não chore”. Sem dúvida, tais palavras devem ter tranquilizado o espírito aflito dela, pois o Divino Mestre as fez acompanhar de especiais graças de consolação. A esse propósito, comenta Maldonado: “Devemos crer que Cristo disse essa palavra de consolo de maneira muito diferente do que haviam feito as outras pessoas. Pois não há dúvida de que palavras iguais ou semelhantes lhe diriam todos. Quem há que não diga ‘Não chore’ ao que se lamenta? Mas os outros o diriam de modo humano e com razões humanas. [...] Cristo, pelo contrário, consola-a de maneira que, ou com outras palavras omitidas pelo Evangelista, ou com o tom de voz com o qual disse estas mesmas palavras, deixa-lhe entrever, de alguma forma, a esperança de que seu filho ressuscitaria”. Essa primeira atitude de Nosso Senhor já deve ter causado assombro nos circunstantes, pois manifestava uma compaixão como ninguém tinha na época.
Contrariando a Lei de Moisés
“Aproximou-Se, tocou o caixão, e os que o carregavam pararam”.
A seguir, Ele tocou no esquife. Os que estavam conduzindo o defunto pararam surpresos, percebendo que algo de inusitado ia acontecer, uma vez que só a eles era permitido esse gesto, pois “reputava-se imundícia nos homens tudo quanto estava corrompido ou exposto à corrupção. E como a morte é corrupção, o cadáver era considerado como imundo”. A Lei preceituava expressamente certas abluções e purificações para todo aquele que tivesse contato com um morto (cf. Nm 9, 6-7; 19, 11-13). Tanto mais que, segundo o costume, o caixão não era fechado, e o corpo, já embalsamado e envolto em um lençol, era transladado sobre uma maca, à vista de todos, tendo a cabeça coberta por um sudário, que de vez em quando levantavam para ver o rosto. 13 Assim, pôr a mão sobre o féretro significava fazê-lo quase no cadáver. No entanto, Nosso Senhor — e este é um ponto fundamental — não teve repugnância nem receio algum de tocá-lo.
Um milagre que superava todos os anteriores
“Então, Jesus disse: ‘Jovem, eu te ordeno, levanta-te!’”.
Ora, o Mestre iniciara sua pregação havia já certo tempo, operara milagres, impressionando as multidões, e sua fama se havia propagado por toda a região (cf. Lc 4, 37; 5, 15). Agora, porém, Ele vai fazer um prodígio que superará em majestade e poder todos os outros antes realizados. Bastaria um simples ato de sua vontade divina para fazer a alma do jovem retornar ao corpo. Todavia, a fim de não haver dúvida de que era Ele mesmo o Autor daquela ressurreição, com voz imperiosa, deu ao morto a ordem de se levantar. “Eu te ordeno” era uma fórmula que nunca havia sido usada por nenhum taumaturgo da História, nem por Elias, a quem a primeira leitura deste domingo contempla ressuscitando o filho da viúva de Sarepta só depois de grandes súplicas e um prolongado cerimonial (cf. I Rs 17, 17-22); nem mesmo por Eliseu, ao devolver à sunamita o filho que havia perdido (cf. II Rs 4, 32-35); nem sequer por Moisés ou Josué, ao abrir as águas do Mar Vermelho ou do rio Jordão (cf. Ex 14, 21; Js 3, 15-17). O “Eu te ordeno”, só Deus, dominador absoluto de toda a criação, Senhor da vida e da morte, podia dizer. “Mostra Cristo com essas palavras que o ressuscita por sua própria autoridade e mandato, e não com poder alheio. Fala ao que estava morto, porque é Deus, cuja voz só pode se fazer ouvir pelos próprios mortos”. Isto era suficiente para que todos os presentes cressem em sua divindade.
Um gesto de divina delicadeza
“O que estava morto sentou-se e começou a falar. E Jesus o entregou à sua mãe”.
O Evangelista não narra as circunstâncias da morte do jovem, nem o momento em que esta se dera; contudo, podemos afirmar com certeza que tanto a multidão de Naim como também os que acompanhavam Nosso Senhor, haviam constatado o falecimento, dada a imobilidade e a rigidez do corpo. Subitamente, o cadáver toma vida, senta-se na maca em que estava sendo transportado e começa a falar. Imaginemos o impacto de tal cena e o “estremecimento de espanto [que] invadiu o ânimo de todos ante aquela manifestação da divindade de Cristo”.
Uma vez feito o milagre, Jesus bem poderia retirar-Se, mas, num gesto de divina delicadeza, entregou o ressuscitado à mãe, como se lhe dissesse com acento cheio de bondade: “Não te disse para não chorares? Aqui está o teu filho”. Podemos conceber a alegria da mãe: sem dúvida, a tristeza de ter assistido à morte do filho e de vê-lo rumar para o túmulo foi largamente superada pelo gozo experimentado naquele instante. Nem mesmo a felicidade do dia em que recebera o menino nos braços, depois de nascer, se igualou à desse momento, no qual o filho lhe era restituído pelas mãos do próprio Deus.
Imaginemos, também, o júbilo do jovem, depois de ter atravessado os umbrais da morte, ressuscitando com mais vigor do que tivera durante toda a sua existência anterior, pois, embora o Evangelho nada afirme a tal respeito, é preciso frisar, com convicção, que a saúde dada por Nosso Senhor a ele não pode ter sido igual à que sua mãe lhe transmitira ao concebê-lo, devido à diferença infinita entre o poder da mãe e o de Jesus Cristo, Homem e Deus verdadeiro. A partir daquele instante, então, o jovem teve maior vitalidade, pôde trabalhar com redobrada energia e deu à sua mãe um conforto extraordinário. Sem dúvida, terá assistido entre lágrimas à morte dela, pensando em quem, anos antes, o ressuscitara.
O efeito causado na multidão
“Todos ficaram com muito medo e glorificavam a Deus, dizendo: ‘Um grande profeta apareceu entre nós e Deus veio visitar o seu povo’”.
Diante de tamanho prodígio, a estupefação e o medo tomaram conta de todos. Haviam constatado no Mestre a presença de uma virtude absoluta e totalmente sobre-humana, prova irrefutável de que Ele era profeta. Com efeito, era costume o profeta demonstrar, por meio de algum sinal, a autenticidade de sua missão (cf. I Sm 2, 34; II Rs 19, 29; 20, 8-9; Ez 24, 24). Nosso Senhor, nesse caso, não recebeu o título de profeta, mas o de grande Profeta, pois, como vimos, revelou ter poder sobre a vida e a morte. “Essa estupefação respeitosa” — comenta Lagrange — “não é senão o prelúdio dos louvores dados a Deus. As multidões chamam profeta a Jesus, e não filho de Deus, como os demônios (cf. Lc 4, 41), já que estes têm as vistas sobre o mundo invisível, enquanto os homens procuram analogias no passado, em que alguns profetas haviam ressuscitado mortos. Nenhum deles, entretanto, o fizera com uma palavra; por isso consideram Jesus como um grande profeta, o esperado para o tempo da salvação”.Ora, a função fundamental do profeta não é a de prever o futuro, mas sim a de ser guia do povo e apontar-lhe o rumo de sua trajetória. Portanto, nesse episódio da vida pública do Homem-Deus, vemo-Lo manifestar-Se enquanto caminho e vida, como mais tarde Ele mesmo afirmará: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6).
Por que sentiram medo?
Foram também dominados pelo medo os que ali estavam ao tomar contato com o sobrenatural e concluir que, de fato, Deus visitara o seu povo. Porque, embora sabendo da existência de Deus pela Revelação, muitos viviam submergidos no ateísmo prático, tendo-O inteiramente ausente de suas cogitações e obras. Eram capazes de falar d’Ele, no entanto moldavam a vida como se n’Ele não acreditassem. Naquele momento, porém, sentindo sua proximidade, é muito provável que a consciência se tenha despertado no interior de cada um, apontando as próprias misérias e censurando as faltas cometidas no passado.
Aqui podemos nos perguntar: e nós, em nossa vida concreta, cremos em Deus? Ou adotamos uma forma de vida materialista, pela qual acreditamos apenas teoricamente e, na prática, vivemos como se Ele não existisse?
Uma projeção fulgurante da figura de Nosso Senhor
“E a notícia do fato espalhou-se pela Judeia inteira e por toda a redondeza”.
Naqueles remotos tempos, não havendo os meios de comunicação atuais — rádio, telefone, televisão, internet e nem sequer jornal —, a transmissão das notícias era feita oralmente. As novidades se espalhavam de maneira mais natural e mais autêntica, ao contrário de nossos dias em que, devido à velocidade dos novos inventos, vão perdendo elas, pouco a pouco, a penetração nas mentes, tal o excesso de informação. Dessa forma, o relato desse extraordinário milagre se espalhou por toda a Judeia, e é bem provável que por toda a Palestina, ultrapassando até os limites da região. O nome do grande Taumaturgo da Galileia adquiria, assim, uma fama crescente.
O SIGNIFICADO MÍSTICO DO MILAGRE
O episódio da ressurreição do filho da viúva de Naim encerra um profundo significado místico. Depois da queda do homem, no Paraíso, o pecado transmitiu-se, de pai para filho, a toda a sua posteridade. Manchada pela culpa original, a humanidade jazia como morta, merecedora da eterna condenação, tendo as portas do Céu fechadas diante de si. Para os descendentes de Adão e Eva, a justificação apenas podia ser alcançada por meio da fé (cf. Rm 4, 9; Hb 11, 7); e, todavia, se viessem a cair em alguma falta grave, perdendo a graça por humana fraqueza, só lhes seria possível restaurá-la através de grandes e prolongadas penitências. Ainda assim, nada, nem mesmo a prática da Lei, lhes dava a garantia da reconciliação com Deus e da recuperação da vida sobrenatural. Com efeito, São Paulo, em sua carta aos Gálatas, escreve: “Pela prática da Lei, nenhum homem será justificado” (Gal 2, 16). E o Doutor Angélico nos explica que “o fim da lei antiga era também a justificação dos homens. A qual, certamente, a Lei antiga não podia fazer, mas figurava com alguns atos cerimoniais, e prometia por palavras”. Como, pois, ressuscitar alguém espiritualmente, após haver transposto os umbrais da morte do pecado grave? Era isso impossível se não houvesse um Redentor.
Nosso Senhor Jesus Cristo, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, compadeceu-Se dos que permaneciam envoltos nas trevas e na sombra da morte (cf. Lc 1, 79) e tomou a iniciativa de encarnar-Se, sofrer a Paixão e a morte de Cruz, para triunfar na Ressurreição, a fim de ressuscitar o corpo inerte da humanidade pecadora. Ele, o Verbo Eterno, traz a vida da graça, que é infundida nos corações dos fiéis, como Ele mesmo dirá: “Eu vim para que vós tenhais vida e a tenhais em abundância” (Jo 10, 10). Ao assumir a natureza humana e tornar-Se nosso irmão, Jesus coloca os homens em uma condição superior à de nossos primeiros pais, pois no Paraíso, antes do pecado, não tinham eles o Salvador, que nos proporciona caudais de graças atuais, deixa-Se ficar entre nós como alimento e nos lega o precioso dom dos Sacramentos, para manter a vida sobrenatural por Ele instaurada. “O felix culpa, quæ talem ac tantum meruit habere Redemptorem! — Ó feliz culpa, que nos fez merecer um tão grande Redentor!”.
Nosso Senhor toma a iniciativa da nossa conversão
Entretanto, o ponto que mais deve atrair nossa atenção, ao considerar esta passagem do Evangelho, é o fato de o próprio Cristo haver tomado a iniciativa de operar aquela ressurreição, sem que a viúva lhe houvesse pedido ou alguém intercedesse em favor dela. Ademais, tudo indica ter sido a primeira vez que Jesus visitava a cidade de Naim e, portanto, os habitantes talvez ainda nem sequer O conhecessem, de modo que Ele não iria exigir um ato de fé da senhora nem do povo que a acompanhava. Por conseguinte, neste caso, Ele quis realizar um milagre estupendo, passando por cima de todas as regras, por haver sentido compaixão.
Em Jesus, a capacidade de compadecer-Se das misérias e das necessidades dos outros é insuperável, inefável e até inimaginável por qualquer mente humana, pois é infinita e provém de um Coração arrebatado de amor pelo Pai e, portanto, de amor aos homens, em Deus. Esse Coração, por ser humano, é também sensível. Ele ama a frágil natureza de suas criaturas, que Ele mesmo assumiu ao vir ao mundo, e quer cumulá-la de bens, para fazê-la reinar consigo na eternidade. Tendo Ele subido aos Céus, a caridade de seu Sagrado Coração permanece sempre junto a nós. Assim sendo, “conservemos firme a nossa fé. Porque não temos nele um pontífice incapaz de compadecer-se das nossas fraquezas” (Hb 4, 14-15). Pelo contrário, se ao longo de sua vida terrena atendeu a todos os que d’Ele se aproximaram, e moveu-Se de piedade por uma pobre viúva que cruzou seu caminho, por que não terá pena de nós quando nos acharmos numa situação de necessidade? Quantas vezes Ele mesmo dá o primeiro passo para se encontrar conosco, tomando a iniciativa de nos salvar de algum perigo, sem ao menos Lhe havermos dirigido uma súplica, numa maravilhosa atitude que deixa patente a ternura de seu amor por cada um de nós!
Nada devemos temer
Por isso, vale a pena viver em função da Palavra que nos ressuscitou para a vida eterna e nos dá o ânimo necessário para seguir adiante, enfrentando todos os obstáculos, e considerando-os apenas como elementos permitidos por Deus para aumentar os nossos méritos. E se tivermos a infelicidade de cair em pecado, não julguemos que Ele vai nos rejeitar. Também os mortos, na legislação judaica, não podiam ser tocados. Entretanto, o Evangelho deste domingo nos mostra Jesus aproximando-Se do féretro, para nele tocar e ressuscitar aquele jovem falecido.
Não nos alarmemos, então, com as possíveis tragédias que nos possam sobrevir. Nas circunstâncias mais difíceis, quando o sofrimento nos assaltar, deitando sua negra sombra sobre nossa vida, lembremo-nos de que nunca padecemos sozinhos, pois há Alguém que também passa ao nosso lado e nos acompanha com seu olhar, porque nos ama com um Coração de Pai compassivo e deseja a nossa salvação eterna. E, sendo Senhor de tudo, tem poder de sempre nos livrar de todos os perigos e penas que possam nos ameaçar. Isso deve ser motivo de sustentação e de alegria para nós.
Inédito sobre os Evangelhos - Volume VI
O impacto das iniciativas do Redentor, p. 134-149