Os
frutos da Ascensão nos beneficiam a cada instante, tal como a última
bênção de Jesus aos Apóstolos, no Monte das Oliveiras, se prolonga
através da História até cada um de nós.
Evangelho de São Lucas 24,46-53
46
E disse-lhes: "Assim está escrito que o Cristo devia padecer e
ressuscitar dos mortos ao terceiro dia, 47 e que em seu nome havia de
ser pregado o arrependimento e a remissão dos pecados a todas as nações,
começando por Jerusalém. 48 Vós sois as testemunhas destas coisas. 49
Eu vou mandar sobre vós o Prometido por meu Pai. Entretanto, permanecei
na cidade até que sejais revestidos da força do Alto". 50 Depois,
levou-os até junto de Betânia e, levantando as suas mãos, abençoou-os.
51 E enquanto os abençoava, separou-Se deles e era levado para o Céu. 52
Eles, depois de O adorarem, voltaram para Jerusalém com grande alegria,
53 e estavam continuamente no Templo louvando a Deus.
I - Suprema glorificação de Cristo
Às
vezes, a perfuração produzida por uma agulha é mais danosa do que o
golpe de um martelo, sobretudo quando ela atinge pontos vitais. Essa
comparação talvez ainda ganhe em substância e expressividade se
revertida para o campo da polêmica doutrinária, como se verificou na
refutação de São Bernardo ao judeu que, no alto do Calvário, desafiou a
Cristo em sua agonia: "Se és o Filho de Deus, desce da Cruz"
(cf. Mt 27, 42; Mc 15, 32). Segundo o Fundador de Claraval, é mal
concebida essa proposta para comprovar a origem divina de Jesus, pois a
realeza, e mais ainda a divindade de um ser, não se torna patente pelo
ato de descer, mas muito ao contrário, pelo de subir. E foi exatamente o
que sucedeu com Jesus, quarenta dias após sua triunfante Ressurreição.
Por isso, debaixo de certo ângulo, a Ascensão do Senhor ao Céu constitui
a festa de maior importância ao representar a glorificação suprema de
Cristo Jesus. Ele próprio a havia pedido ao Pai: "Glorifica-Me
junto de Ti mesmo, com aquela glória que tive em Ti, antes que houvesse
mundo" (Jo 17, 5); "Pai, chegou a hora, glorifica o teu Filho, para que
teu Filho glorifique a Ti" (ibid. v.
1). Daí ser compreensível a manifestação de alegria dos Santos Padres ao
comentarem essa glorificação do Cordeiro de Deus.
"A glória de Nosso Senhor Jesus Cristo se completa com sua Ressurreição e Ascensão. (...) Temos, pois, o Senhor, nosso Salvador, Jesus Cristo, primeiro pendente de um madeiro e agora sentado no Céu. Pendendo no madeiro, pagava o preço de nosso resgate; sentado no Céu, recolhe o que comprou" (1).
A morte não sepultou Jesus no esquecimento
De
fato, esse júbilo a propósito da Ascensão, que pervade a alma dos
santos e se manifesta tão patente no texto do Ofício Divino e na própria
Liturgia de hoje, tem sólido fundamento, pois jamais se ouviu dizer de
alguém que, ao deixar este mundo, se elevasse aos olhos de centenas de
testemunhas e, por seu próprio poder, penetrasse nos Céus.
Bem
ao contrário, após a morte, nossos corpos gélidos e inertes descem ao
seio da terra e, na maioria dos casos, até a nossa lembrança se apaga na
mente dos que aqui permanecem. A propósito de Cristo, deuse exatamente o
inverso, pois não só a recordação de seus ensinamentos, de seus atos e
até de sua história se prolongou através dos séculos, como também suas
testemunhas, dotadas de um poder sobre-humano, fizeram ecoar seus
relatos em meio aos povos e através das gerações. Para tal, contribuíram
os quarenta dias de permanência de Jesus ressurrecto entre os
discípulos. A debilidade destes certamente exigia esse poderoso remédio,
pois os episódios em torno da Paixão do Senhor abalaram a sensibilidade
psicológica e até a própria virtude da fé de todos eles.
As perspectivas humanas dos Apóstolos dificultavam sua visão sobrenatural do Messias
As
primeiras notícias sobre a Ressurreição encontraram um vácuo de
incredulidade em cada um deles, a ponto de Tomé só ter-se convencido ao
tocar-Lhe as chagas. Compreende- se a lógica dessas reações, pois,
humanos como eram, formados na perspectiva de um Messias com fortes
traços políticos, acostumados ao longo de três anos a um convívio todo
feito de paternal e penetrante afeto, só poderiam assim se sentir
protegidos, assumidos e transformados. E por isso desejavam perpetuar
aquele relacionamento a partir de onde se havia interrompido com aquela
morte tão ignominiosa.
Contudo,
os véus da carne mortal lhes obumbravam a real visão da divindade do
Salvador. Era indispensável substituírem a experiência um tanto humana
por outra mais elevada na qual apalpassem, por assim dizer, os reflexos
da Alma gloriosa de Jesus sobre seu sagrado Corpo. Para poder cumprir
sua missão redentora, Ele havia feito um milagre em detrimento de suas
próprias qualidades, rompendo leis por Ele criadas. Desde o primeiro
instante de sua Concepção, no seio da Virgem Mãe, sua santíssima Alma
gozava da visão beatífica e, em conseqüência, seu adorável Corpo deveria
ter sido glorioso. Se assim fosse, porém, não poderia Ele padecer. Ora,
por essa razão, os discípulos acabaram por se habituar a uma
interpretação a respeito do Filho de Deus muito distante daquela que se
terá no Céu. Essa situação chegou ao extremo de terem sido os Apóstolos
os únicos a comungar o Corpo padecente de Jesus na Eucaristia,
distribuída na Santa Ceia.
Por que Jesus conviveu quarenta dias com os Apóstolos, em Corpo glorioso
Por
aí se pode compreender o quanto, após a Paixão de Jesus, as saudades
dos Apóstolos e discípulos giravam em torno de um relacionamento de
certa forma equivocado. Entende-se melhor também a necessidade do
Redentor conviver com eles quarenta dias em Corpo glorioso, pois Jesus "não
quis que permanecessem sempre carnais nem amando- O com amor terreno.
Queriam que estivesse sempre com eles, carnalmente, movidos pelo mesmo
afeto pelo qual Pedro temia vê-Lo padecer. Consideravam- No seu mestre,
consolador e protetor, homem, afinal, como eles próprios; e se não
vissem algo diferente julgá-Lo-iam ausente, sendo que Ele estava
presente em todos os lugares com sua majestade".
Por outro lado, em face da lembrança traumatizante dos dias da Paixão, "convinha
agora levantar-lhes o ânimo para começarem a pensar n'Ele
espiritualmente, como o Verbo do Pai, Deus de Deus, pelo qual todas as
coisas foram feitas; esse pensamento lhes era vedado pela carne que
viam. Convinha, sim, confirmá- los na fé, vivendo com eles quarenta
dias, mas era ainda mais conveniente separar-Se de suas vistas para que
Quem na terra os estava acompanhando como irmão os socorresse desde o
Céu como Senhor, e eles aprendessem a pensar n'Ele como em Deus" (2).
"Não vos deixarei órfãos"
O próprio Jesus havia afirmado:
"É melhor para vós que Eu vá, pois, se Eu não for, o Paráclito não virá
a vós; mas, se Eu for, Eu vo-Lo enviarei. (...) Eu vou para o Pai, e já
não Me vereis" (Jo 16, 7.10). E, de
fato, os Apóstolos nunca mais O encontraram, pois, ao penetrar no Céu,
deixou de estar presente na terra de modo natural.
Em contrapartida, Ele mesmo prometera: "Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo" (Mt
28, 20). E realmente Ele está entre nós, na Eucaristia, debaixo dos
véus das Sagradas Espécies. Ademais, nunca deixa de nos acompanhar: "Subindo aos Céus, Ele não abandona de modo algum aqueles que adotou" (3). Estas belas palavras de São Leão Magno fazem eco às de Nosso Senhor: "Não vos deixarei órfãos" (Jo 14, 18).
Consola-nos
constatar o quanto se tem cumprido essa promessa ao longo destes vinte e
um séculos, dia após dia, das mais variadas maneiras. Não poderia ser
que sua Ascensão constituísse um abandono daqueles por quem Ele se
Encarnou e morreu no Calvário. Seu retorno ao Pai só pode ter-se dado na
seqüência desse amor incomensurável d'Ele a cada um de nós. A Ascensão
deu-se por uma conveniência sua, mas também para benefício nosso. São
Tomás nos ensina: "O lugar deve ter
proporção com quem nele está. Ora, Cristo, após a Ressurreição, deu
início a uma vida imortal e incorruptível, e o lugar no qual habitamos é
lugar de geração e de corrupção, ao passo que o lugar celeste é um
lugar de incorrupção. Logo, não era conveniente que Cristo, após a
Ressurreição, permanecesse na terra e, sim, que subisse ao Céu" (4). E ao ocupar um lugar no Céu, proporcionado à sua Ressurreição, "algo se Lhe acrescentou no que diz respeito ao decoro do lugar, o que redunda em bem da glória". E citando o Salmo 15, 11: "À tua destra delícias eternas até o fim", São Tomás aplica a este versículo o comentário da glosa: "Terei prazer e alegria quando estiver sentado a teu lado, após ter sido tirado da vista humana" (5).
II - Benefícios da Ascensão
Também nós fomos beneficiados por incontáveis dons com a Ascensão.
Segundo São Leão Magno, passamos a conhecer melhor Jesus a partir do
momento em que Ele retornou às glórias do Pai. Nossa fé, "mais
esclarecida, aprendeu a elevar-se pelo pensamento, sem necessidade do
contato com a substância corporal de Cristo, na qual Ele é menor que o
Pai, dado que, embora permanecendo a mesma substância do corpo
glorificado, a fé dos fiéis é convidada a tocar, não com a mão terrena,
mas com o entendimento espiritual, o Unigênito, igual Àquele que O
engendrou. É este o motivo pelo qual o Senhor, após a Ressurreição,
disse a Madalena - que representava a pessoa da Igreja -, ao
aproximar-se para tocá-Lo: ‘Não me toques, pois ainda não subi ao meu
Pai' (Jo 20, 17). Quer dizer, não quero que procures minha presença
corporal nem que me reconheças com os sentidos carnais; chamo- te para
coisas mais elevadas, destino- te a bens superiores. Quando subir a meu
Pai, Me tocarás de forma mais real e verdadeira, tocando no que não
apalpas e crendo no que não vês" (6).
Fortalecimento da fé
Demonstra-nos
São Tomás de Aquino que, privando-nos de sua presença corporal, ao
penetrar na glória eterna, Jesus Cristo tornou-se ainda mais útil para
nossa vida espiritual. Primeiro, "para aumento da fé, que é sobre o que
não se vê. Por isso, o próprio Senhor diz no Evangelho de João que o
Espírito Santo, ao vir, ‘argüirá o mundo a respeito da justiça', ou
seja, da justiça ‘dos que crêem', como diz Santo Agostinho: ‘A
própria comparação dos fiéis com os infiéis é uma censura'. Por isso,
acrescenta: ‘Porque Eu vou para o Pai e não Me vereis mais, pois são
bem-aventurados os que não vêem e crêem. Será nossa a justiça, de que o
mundo será argüido, porque credes em Mim, a Quem não vedes'" (7).
A esse propósito, São Gregório Magno externa sua convicção: "Com
sua facilidade em crer, Maria Madalena nos aproveita menos do que Tomé
duvidando por muito tempo, porque este, em meio a suas dúvidas, exigiu
tocar as cicatrizes dessas chagas, e com isso nos tirou todo pretexto
para vacilação" (8).
Aumento da esperança
Em
segundo lugar, "para reerguer a esperança", pois, "pelo fato de Cristo
ter elevado ao Céu sua natureza humana assumida, deu-nos a esperança de
lá chegarmos, porque ‘onde quer que esteja o corpo, ali se reunirão as
águias', como diz Mateus. Por isso, diz também o livro de Miquéias: ‘Já subiu, diante deles, Aquele que abre o caminho'" (9).
Abrasamento da caridade
Uma
terceira razão, ainda segundo São Tomás, torna a Ascensão mais benéfica
a nós do que a própria presença física de Nosso Senhor, e esta se
refere à caridade. Na seqüência dessa mesma questão da Suma, o Doutor
Angélico, a fim de nos mostrar as vantagens para essa virtude, cita São
Paulo: "Por isso, diz o
Apóstolo: ‘Procurai o que está no alto, lá onde Se encontra Cristo,
sentado à direita de Deus; aspirai às coisas de cima, não às da terra',
pois, como foi dito, ‘onde estiver o teu tesouro, ali também estará o
teu coração'" (10). E,
após discorrer sobre o amor enquanto propriedade do Espírito Santo e a
respeito da grande necessidade que dele tinham os Apóstolos, termina com
esta citação de Santo Agostinho: "Não
podeis receber o Espírito enquanto persistirdes em conhecer a Cristo
segundo a carne. Pois quando Cristo Se afastou corporalmente, não só o
Espírito Santo, mas também o Pai e o Filho estavam espiritualmente em
presença deles" (11).
III - A narração de São Lucas
Ser-nos-á mais fácil, depois das antecedentes considerações, analisarmos o próprio texto do Evangelho de hoje.
Onipotência e sabedoria de Deus na condução da História
46 Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e ressuscitar dentre os mortos, ao terceiro dia.
Estas
palavras do Divino Redentor, antes de subir aos Céus, não foram
dirigidas somente aos Apóstolos, mas a todos os chamados por Ele a
realizar alguma missão junto às almas. São palavras que têm uma certa
ordem e concatenação, e assim devem ser entendidas.
Mais
uma vez, transparecem na Escritura Sagrada a onipotência e a suma
sabedoria de Deus na condução da História. Aconteceu porque estava
escrito e, por sua vez, foi previsto e anunciado porque assim deveria se
passar, por uma determinação perfeitíssima e suprema de Deus. Este
versículo nos convida a um momento de meditação e admiração.
Contemplemos
os excelsos desígnios do Ser Supremo que a tudo regula de maneira
insuperável, aproveitando- Se para sua glória, não só da virtude dos
bons, mas até mesmo do concurso da malícia e ódio dos maus, da enferma
vontade dos tíbios, da volubilidade dos indecisos, da voluptuosidade dos
passionais, da cegueira dos orgulhosos, do delírio incontenível dos
tiranos. Nada deixa de contribuir para sua honra, louvor e glória; de
tudo tira proveito com tal equilíbrio que nunca produz o menor prejuízo
ao livre arbítrio de uns e de outros.
Adoremos
a Providência Divina e a Ela apresentemos nossa gratidão, como também
nossa reparação por todas as ofensas que a cada instante sobem ao seu
trono. Assim, seremos do número dos bons e Deus se servirá de nossa
disposição de alma e de nossas ações para sua maior glória. E peçamos a
Ele, por intercessão de sua Mãe Santíssima, jamais pertencermos ao
partido dos maus, os quais têm como objetivo de suas existências o
disputar com Deus o seu poder. De que lhes vale atribuírem-se a si
próprios capacidades inexistentes, ou mesmo reais, se estas
absolutamente não lhes pertencem, pois lhes foram conferidas pelo Ser
que visam destronar? E qual o proveito que tiram ao darem largas às suas
paixões e maus instintos para perseguir a virtude e quem a pratica?
Foi
tão estúpida e contraproducente a atuação dos demônios e dos maus
judeus em todo o drama da Paixão que se com anterioridade tivessem
conhecido seus efeitos - ou seja, a obra da Redenção -, jamais teriam
desejado ou contribuído para sua realização.
De
todas essas ações e situações, Deus saberá extrair os elementos para
sua glória. Mas, o destino de uns será a felicidade do Céu e o dos
outros, o suplício eterno.
Metanóia: essência da conversão
47 E que em seu nome havia de ser pregado o arrependimento e a remissão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém.
Antes
de subir aos Céus, o Redentor não lhes dá nenhuma recomendação política
e muito menos insinua algo na linha de uma reconquista do poder de
Israel. Pelo contrário, suas palavras visam uma atuação estritamente
moral, religiosa e penitencial em nome de Deus.
Essa
conversão, a qual na sua essência é a mudança de mentalidade
(metanóia), já havia sido intensamente estimulada pelo Precursor. João
Batista se apresentara como a voz que clama no deserto, a fim de que
todos endireitassem os caminhos para a chegada do Senhor. Esse é também o
legado do Redentor aos seus, antes da Ascensão. A substituição dos
critérios equivocados pelos verdadeiros é indispensável para a real
conversão. Saulo, em um só instante a realizou, logo ao cair do cavalo, e
assim mesmo passou por um retiro de três anos no deserto para torná-la
irreversível, como também profunda e eficaz. Comumente, ela se faz de
maneira lenta, após os fulgores de um primeiro como que "flash",
mediante o qual, pela graça do Espírito Santo, a alma se dá conta das
belezas das vias sobrenaturais e por elas resolve trilhar com decidida
firmeza. Sem essa conversão, é-nos praticamente inútil o Mistério da
Redenção e de nada nos adianta o Evangelho. De forma explícita ou
implícita - dada nossa natureza racional - a atuação de nossa
inteligência e vontade se faz com base em princípios e máximas que
norteiam as potências de nossa alma. É sobre essa fonte que se concentra
o esforço da conversão. Em síntese, trata-se de substituir o amor
próprio, o qual se manifesta no apego às criaturas, pelo amor a Deus.
É
de dentro da visualização perfeita a respeito da retidão da prática da
Lei de Deus e de sua santidade que brota o eficaz pedido de perdão dos
pecados. É nesse contraste que o penitente tem plena consciência da
grande misericórdia anunciada por Jesus, antes de sua partida para os
Céus. Nem os anjos revoltosos e nem os homens que morreram em pecado
receberam essa dádiva incomensurável. E, nesse momento, ela nos foi
oferecida pelo próprio Filho de Deus.
Iniciando-se
em Jerusalém, do Sagrado Costado de Cristo nasce a Igreja a pregar ali,
e depois pelo mundo afora, a Boa Nova do Evangelho. Assim havia
profetizado o Antigo Testamento, assim ordenou naquela ocasião o próprio
Jesus Cristo.
O testemunho dos Apóstolos robustece nossa fé
48 Vós sois as testemunhas destas coisas.
Sim.
Nossa fé se robustece pela comprovação ocular dos Apóstolos, dos
setenta e dois discípulos e de muitos outros aos quais se fez ver o
Salvador depois da Ressurreição. Que vantagens humanas, temporais ou
eternas, teriam eles em selar com o próprio sangue fatos que constituem
escárnio para seus co-nacionais e loucura para os gentios? Eis um
argumento irrefutável a favor da objetividade dos relatos feitos por
eles.
Papel da espera, até a vinda do Espírito Santo
49 Eu vou mandar sobre vós o Prometido por meu Pai. Entretanto, permanecei na cidade até que sejais revestidos da força do Alto.
Trata-se
da Terceira Pessoa da Trindade, que Jesus enviaria, segundo a promessa
feita pelo Pai, ou seja, "a força do Alto". É o Espírito Santo, que
procede do amor entre o Pai e o Filho, que descerá sobre eles, a fim de
serem n'Ele submersos, penetrados e revestidos por Ele, para, assim
transformados, realizarem sua missão de testemunhas. Os Apóstolos "serão
preparados com a grande força renovadora e fortalecedora de
Pentecostes. Receberão o Espírito Santo, de cujo envio tanto falou o
Evangelista João nos discursos da Última Ceia" (12).
A
ordem de não saírem de Jerusalém sob qualquer pretexto tinha por
objetivo a espera de Pentecostes para começarem a pregar. Entenderam
eles que, esse período, deveriam passá- lo em recolhimento, pois é
nessas circunstâncias que mais profundamente Ele age.
São João Crisóstomo comenta a esse propósito: "Para
não se poder dizer que tinha abandonado os seus para ir manifestar-Se -
mais ainda, ostentar- Se - aos estranhos, ordenou-lhes Jesus apresentar
as provas de sua Ressurreição primeiramente àqueles mesmos que O tinham
matado, na cidade onde foi cometido o temerário atentado, pois, se os
que haviam crucificado o Senhor davam mostras de crer, ter-se-ia uma
grande prova da Ressurreição" (13).
Por outro lado, continua São João Crisóstomo:
"Assim como, num exército que se alinha para atacar o inimigo, o
general não permite a ninguém sair antes de estarem todos preparados, da
mesma forma Jesus não permite a seus Apóstolos saírem a pelejar
enquanto não estejam preparados pela vinda do Espírito Santo" (14).
E por qual razão o Espírito Santo não desceu sobre os Apóstolos, de imediato? "Convinha
que nossa natureza se apresentasse no Céu e fossem realizadas as
alianças, e depois então viesse o Espírito Santo e se celebrassem os
eternos júbilos", opina Teofilacto (15).
A última bênção de Jesus se estende até nós
50 Depois levou-os até junto de Betânia e, erguendo as mãos, abençoou-os.
"O
ato de levantar as mãos e os abençoar significa que quem abençoa deve
estar ornado de boas e heróicas obras em benefício dos demais; por isso
levantou as mãos ao céu", comenta Orígenes (16).
Jesus
procede como os sacerdotes da Antiga Lei, nesse gesto de abençoá- los. O
sacerdócio de Cristo tem seu início no próprio momento da Encarnação
(cfr. Hb 10, 5-10), mas, se bem tenha tido princípio, jamais terminará,
pois é Ele sacerdote in aeternum. A dignidade, ação, virtude e frutos
sacerdotais do sacrifício de Cristo estarão diante do Pai eternamente.
Por isso, neste momento, sua bênção se estende também sobre nós.
Saibamos aproveitá-la, ao contemplar esse último adeus externado por
Jesus no alto do Monte das Oliveiras.
Jesus nos preparou o caminho para subirmos ao Céu
51 E enquanto os abençoava, separou- Se deles e era levado para o Céu.
Grandiosa
cena e acontecimento inédito. Elias também subia, mas arrebatado num
carro de fogo e não pelas próprias forças. Cristo, pelo contrário, "subiu
ao Céu pelo seu próprio poder; primeiro pelo poder divino; segundo,
pelo poder da alma glorificada que movia o corpo como queria"
(17). Os Apóstolos e discípulos já O haviam visto andar sobre as águas,
entrar no Cenáculo a portas fechadas, escapar em meio à multidão, mas
elevar-Se ao Céu ainda não. Eles não ignoravam para onde partia Nosso
Senhor, já haviam ouvido dos lábios do próprio Mestre qual seria seu
destino. E com os Apóstolos devemos crer que, por sua Ascensão, Jesus "preparou-nos
o caminho para subirmos ao Céu, de acordo com o que Ele mesmo disse:
‘Irei preparar-vos um lugar', e com as palavras do livro de Miquéias:
‘Subiu, diante deles, Aquele que abre o caminho'. E porque Ele é a nossa
cabeça, mister se faz que os membros vão para onde ela se dirigiu. Por
isso diz o Evangelho de São João: ‘De tal sorte que lá onde Eu estiver
também vós estejais'" (18).
Onde se encontra a verdadeira fonte da alegria
Esse
gesto de prosternarem-se diante de Jesus em sua Ascensão significa um
reconhecimento pleno de sua majestade. Pedro já assim procedera por
ocasião da pesca milagrosa (cf. Lc 5, 8ss).
Do
Monte das Oliveiras a Jerusalém, caminha-se apenas a distância de uma
viagem em dia de sábado. Esse percurso foi realizado pelos Apóstolos, em
"grande alegria", e se compreende.
Esse
mesmo júbilo os acompanhará ao saírem dos tribunais, nos quais haviam
sido condenados por pregar o nome de Jesus. Assim aprendem os Apóstolos -
e nos ensinam - onde estão as verdadeiras fontes de alegria: no
cumprimento da vontade de Deus que, às vezes, se faz através do curto
caminho da cruz.
Ligação entre o Antigo e o Novo Testamento
53 E estavam continuamente no Templo louvando a Deus.
Tal
qual inicia seu Evangelho com os ofícios de Zacarias no Templo, termina
São Lucas aludindo à freqüência assídua dos Apóstolos em todos os atos
do culto praticado na Antiga Lei. A Santa Igreja não se separou da
Sinagoga de forma abrupta e violenta. O Templo estava intimamente ligado
à vida de Jesus, e os que iam receber o Espírito Santo, com humildade,
veneração e piedade, se preparavam indo rezar na casa de oração, da qual
o Mestre havia expulsado os vendilhões por duas vezes. Eles
consideravam o Templo com uma perspectiva muito diferente da de seus
co-nacionais. O mirante dos Apóstolos era um dos legados do Filho de
Deus, ou seja, o próprio olhar d'Ele.
Maria vivia em constante oração
Uma
palavra sobre Maria. Certamente intercedeu Ela junto a Deus para
inspirá-los a permanecerem em oração no Cenáculo. Nela, a altura de sua
humildade era a mesma da de sua fé, virginalidade e grandeza. Ela estava
rezando ao pé da Cruz, no Calvário; agora A encontramos em profundo
recolhimento. Depois da descida do Espírito Santo, a Escritura não mais A
mencionará e, provavelmente, o resto de seus anos, Ela os viveu em
intensa oração, constituindo- Se no insuperável modelo da mulher cristã.
Que Ela nos obtenha todas as graças para seguirmos suas vias e virtudes.
(Revista Arautos do Evangelho, Maio/2007, n. 65, p. 12 à 19)