São Francisco foi um grande santo, e um homem cheio de alegria. "A sua simplicidade, a sua fé, o seu amor por Cristo, a sua bondade por cada homem o fizeram feliz em toda situação. Olhando para ele, compreendemos que é este o segredo a verdadeira felicidade: tornarmo-no santos!" (Bento XVI)
De onde começa o caminho de Francisco para Cristo? Começa do olhar de Jesus na cruz. Deixar-se olhar por Ele no momento em que dá a vida por nós e nos atrai para Ele. Francisco fez esta experiência, de um modo particular, na pequena igreja de São Damião, rezando diante do crucifixo, que poderei também eu venerar hoje. Naquele crucifixo, Jesus não se apresenta morto, mas vivo! O sangue escorre das feridas das mãos, dos pés e do peito, mas aquele sangue exprime vida. [...] Voltamo-nos para ti, Francisco, e te pedimos: ensina-nos a permanecer diante do Crucifixo, a deixar-nos olhar por Ele, a deixar-nos perdoar, recriar pelo seu amor.
Faço minha a oração de São Francisco por Assis, pela Itália, pelo mundo: «Peço-Vos, pois, ó Senhor Jesus Cristo, pai das misericórdias, que Vos digneis não olhar à nossa ingratidão, mas recordai-Vos da superabundante compaixão que sempre mostrastes [por esta cidade], para que seja sempre o lugar e a morada de quantos verdadeiramente Vos conhecem e glorificam o vosso bendito e gloriosíssimo nome pelos séculos dos séculos. Amen» (Espelho de perfeição, 124: FF, 1824).
(Papa Francisco, na Visita Pastoral a Assis, 4 de outubro de 2013)
São Francisco de Assis nasceu em 1182, tendo partido para a Eternidade em 1226, aos 44 anos de idade. Na região e na época em que viveu era grande o apego ao luxo e às riquezas, o que minava a sociedade e causava danos à Igreja. Propôs ele um novo ideal de pobreza, obediência e castidade, tendo fundado a Ordem dos Frades Menores (franciscanos), que se expandiu pelo mundo através de várias ramificações. Também, com Santa Clara, fundou a ordem das Clarissas.
Havia se iniciado o século XIII. O jovem filho de um bem sucedido comerciante da cidade de Assis, até então apegado às amizades, aos bens materiais e às atrações do mundo, como a quase totalidade dos rapazes de sua idade, começa a inclinar-se à carreira das armas. Em uma batalha foi preso, tendo de aguardar cerca de um ano até ser resgatado, quando então foi prostrado por uma doença. Recuperado, tentou novamente engajar-se em um exército, porém o chamado de Deus foi mais forte: o jovem João, apelidado Francisco (nome pelo qual se tornou conhecido), voltou-se para o Criador, pois passou a vê-lo com os olhos do espírito ao considerar as virtudes através das quais Ele se revelava.
A juventude e a conversão
Francisco trabalhava como comerciante, e mesmo gostando de obter lucros jamais se prendeu desesperadamente ao dinheiro e às riquezas, gostando, por vezes, de ajudar os pobres. Era muito rico, mas não avarento, e sim pródigo e gastador; um negociante esperto, mas ao mesmo tempo esbanjador insensato. Era gentil, paciente, afável e manso, mas nem sempre as qualidades se sobressaíam naquele jovem que tinha por objetivo a vida mundana.
Certa vez um pobre adentrou a loja em que estava Francisco ocupado com os negócios, para pedir uma esmola pelo amor de Deus, sendo despedido com rispidez sem nada ganhar. A consciência de Francisco logo o acusou, dizendo: "se ele tivesse pedido algo em nome de algum conde ou barão, com certeza o terias atendido; quanto mais não o deverias ter feito pelo Rei dos reis e Senhor de todos". Tomou ali Francisco a decisão de nunca mais negar o que lhe fosse pedido em nome de tão grande Senhor.
Francisco passou a dar generosas esmolas aos pobres que encontrava, inclusive distribuindo suas roupas e outros bens, procurando assim seguir o mandamento do amor ao próximo tantas vezes ilustrado pelos fatos e parábolas narrados nas Sagradas Escrituras. Passou a ser alvo de críticas e deboches por parte dos habitantes da região, e de grande raiva por parte de seu pai, dotado de profundo apego a todos os bens e riquezas que acumulara no comércio de tecidos em que enriquecera.
A rejeição ao mundo e a entrega à pobreza
O conflito familiar chegou a tal ponto que o pai de Francisco, Pedro de Bernardone, levou o caso ao bispo, acusando o filho de dissipar sua fortuna e exigindo uma compensação por tudo o que fora por ele retirado de sua loja para dar aos pobres. Então o jovem, inspirado pelo Espírito Santo, tomou a decisão inimaginável por todos os que ali presenciavam a cena: entregou ao avarento progenitor tudo o que tinha consigo, inclusive as próprias roupas, e disse: doravante não mais direi "meu pai Pedro de Bernardone", e sim "Pai nosso que estais no Céu". Coberto apenas pelo cilício (um áspero couro animal destinado a incomodar a pele, que usava sob as roupas para combater certos impulsos corporais), Francisco foi então abrigado pela capa cedida pelo bispo, ali renunciando publicamente à herança; pediu a bênção episcopal e partiu para a vida de pobreza, passando depois a ter por companheiros vários amigos que quiseram seguir a mesma via de perfeição. Não chegara sequer aos 25 anos quando esses fatos ocorreram. Era o início da família franciscana, que não se restringiu ao sexo masculino, pois Francisco, com a jovem Clara - que se inclinou a seguir os passos desse santo homem -, fundou o ramo feminino, que obteve do papa Inocêncio III o reconhecimento do direito de ser pobre e de nada possuir.
Diz-se que Francisco e a Pobreza contraíram um casamento místico. Na verdade, conforme estudos aprofundados feitos nos antiquíssimos escritos históricos e alegóricos a respeito do Fundador e dos primeiros franciscanos, nota-se que o que Francisco fez foi uma vassalagem mística com a Pobreza, a quem se entregou para servi-la. A ela se referia como "minha senhora", expressão que na época caracterizava uma obediência e com a qual se entregava àquela virtude que tanto admirava.
Entre as mais famosas e importantes virtudes, que no homem preparam um lugar para Deus e ensinam o caminho melhor e mais rápido para chegar até Ele, a santa Pobreza sobressai a todos por uma certa prerrogativa e supera os títulos das outras por uma beleza singular. Ela é fundamento e guardiã das virtudes todas, e entre as conhecidas virtudes evangélicas ela tem, merecidamente, um lugar de honra. Essas palavras iniciam o texto alegórico que mostra a relação mística entre o Fundador franciscano e a Senhora Pobreza, esposa de Cristo.
A Oração da Paz, espelho do amor ao próximo
Em tudo Francisco procurava seguir o Evangelho, como bem se pode perceber nas belas palavras da Oração da Paz que externam o amor ao próximo, e que nunca perderam a atualidade:
Senhor, fazei de mim um instrumento da vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvidas, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade.
Onde houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei com que eu procure mais consolar que ser consolado.
Compreender que ser compreendido; amar que ser amado.
Pois é dando que se recebe; é perdoando que se é perdoado.
E é morrendo que se vive para a vida eterna.
Algumas admoestações de Francisco evidenciam a paz e o amor que se deve ter para com o próximo. Disse ele, comentando as palavras do Divino Mestre "bem aventurados os pacíficos, porque eles serão chamados filhos de Deus": São verdadeiramente pacíficos os que, no meio de tudo quanto padecem neste mundo, se conservam em paz, interior e exteriormente, por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo. Disse também que é bem aventurado o homem que suporta o seu próximo com suas fraquezas tanto quanto quisera ser suportado por ele se estivesse na mesma situação. E ainda, referindo-se à benquerença que deve reinar nas Casas da família franciscana: Bem aventurado o servo que ama o seu confrade enfermo que não lhe pode ser útil, tanto como ao que tem saúde e está em condições de lhe prestar serviços. Bem aventurado o servo que tanto ama e respeita o seu confrade quando está longe como se estivesse perto, e não diz na ausência dele coisa alguma que não possa dizer na sua presença sem lhe faltar à caridade.
Irmão Sol, irmão vento, irmã água, irmão fogo
Vendo a presença de Deus em tudo, Francisco compôs o belíssimo Cântico das Criaturas em que manifesta irmandade até mesmo com os seres inanimados ao neles perceber que, como o homem, foram criados pelo Altíssimo, a quem é devido todo o louvor:
Altíssimo, omnipotente, bom Senhor,
Teus são o louvor, a glória, a honra, e toda a bênção.
Só a ti, Altíssimo, são devidos,
e nenhum homem é digno de te mencionar.
Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as tuas criaturas,
especialmente o senhor irmão Sol,
que clareia o dia e com sua luz nos ilumina.
E ele é belo e radiante, com grande esplendor;
de ti, Altíssimo, ele é a imagem.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Lua e as Estrelas;
no céu as formastes claras, preciosas e belas.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão Vento
e pelo ar, ou nublado ou sereno, e todo o tempo,
por quem dás às tuas criaturas o sustento.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Água,
que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão Fogo,
pelo qual iluminas a noite.
Ele é belo e jucundo, e vigoroso e forte.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe Terra,
que nos sustenta e governa, e produz frutos diversos,
com flores coloridas, e ervas.
Louvado sejas, ó meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor
e suportam enfermidades e tribulações.
Bem aventurados aqueles que as suportam em paz,
pois por ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, ó meu Senhor, por nossa irmã, a Morte corporal,
da qual homem algum pode escapar.
Ai dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar conformes a tua santíssima vontade,
porque a morte segunda não lhes fará mal.
Louvai e bendizei a meu Senhor, e dai-lhe graças
e servi-o com grande humildade.
Saudação à Mãe de Deus
A Santíssima Virgem, honrada na capelinha de Santa Maria dos Anjos (a Porciúncula, de onde Francisco, ao findar seus dias neste mundo, partiria rumo à Casa do Pai) era especialmente venerada pelo Pobrezinho de Assis, que lhe compôs uma singela saudação:
Salve, ó Senhora santa, Rainha santíssima, Mãe de Deus, ó Maria, que sois Virgem feita igreja, eleita pelo santíssimo Pai celestial, que vos consagrou por seu santíssimo e dileto Filho e o Espírito Santo Paráclito! Em vós residiu e reside toda a plenitude da graça e todo o bem! Salve, ó palácio do Senhor! Salve, ó tabernáculo do Senhor! Salve, ó morada do Senhor! Salve, ó manto do Senhor! Salve, ó serva do Senhor! Salve, ó Mãe do Senhor, e salve vós todas, ó santas virtudes derramadas pela graça e iluminação do Espírito Santo, nos corações dos fiéis, transformando-os de infiéis em servos fiéis de Deus!
Discernindo em tudo o Criador
Dois anos antes de passar à Eternidade, o Pobrezinho de Assis compôs um belíssimo hino de louvor a Deus, cuidadosamente registrado e passado à posteridade por um de seus seguidores. Nele se percebe como procurava Francisco, em tudo, discernir o Criador:
Vós sois o santo Senhor e Deus único, que operais maravilhas. Vós sois o Forte. Vós sois o Grande. Vós sois o Altíssimo. Vós sois o Rei onipotente, santo Pai, Rei do Céu e da Terra. Vós sois o Trino e Uno, Senhor e Deus, Bem universal. Vós sois o Bem, o Bem universal, o sumo Bem, Senhor e Deus, vivo e verdadeiro. Vós sois a delícia do amor. Vós sois a Sabedoria. Vós sois a Humildade. Vós sois a Paciência. Vós sois a Segurança. Vós sois o Descanso. Vós sois a Alegria e o Júbilo. Vós sois a Justiça e a Temperança. Vós sois a Plenitude da Riqueza. Vós sois a Beleza. Vós sois a Mansidão. Vós sois o Protetor. Vós sois o Guarda e o Defensor. Vós sois a Fortaleza. Vós sois o Alívio. Vós sois nossa Esperança. Vós sois nossa Fé. Vós sois nossa inefável Doçura. Vós sois nossa eterna Vida, ó grande e maravilhoso Deus, Senhor Onipotente, misericordioso Redentor.
Vê-se, nessas inspiradas palavras, o profundo entendimento das riquíssimas qualidades de Deus manifestado por aquele que se entregou à pobreza, e que abraçou os conselhos evangélicos e as demais virtudes que tão bem percebia no Criador, a quem se deu por inteiro. Dotado de personalidade marcante, Francisco deixou-se impregnar pelas qualidades divinas de tal forma que não só a época em que viveu ficou marcada por sua passagem por este mundo, mas também os séculos que se seguiram. Deixou-nos ele um dos maiores exemplos da verdadeira contemplação das perfeições de Deus - que chegavam a levá-lo a um verdadeiro êxtase - e do amor que se deve ter para com Ele, sem o que nenhuma religiosidade atinge sua plenitude.
Assemelhando-se cada vez mais ao Altíssimo
Francisco tanto amou o Altíssimo que não só no espírito, mas também no corpo, assemelhou-se a Deus. Cerca de dois anos antes de sua morte, foi agraciado com as marcas da Paixão de Cristo, passando a ter nas mãos e pés as feridas correspondentes à crucifixão; na mesma ocasião também foi dotado de uma chaga correspondente à que foi feita pelo soldado que, com a lança, transpassara o coração de Jesus. Indo de encontro à cruz, teve a glória de receber os estigmas do Crucificado.
Os estigmas da Paixão foram concedidos a Francisco em seguida a um momento de profunda oração contemplativa no Monte Alverne, em que o Crucificado lhe apareceu sob a forma inicial de um Serafim com seis asas. Registrou-se que suas mãos e pés pareciam atravessados bem no meio pelos cravos, aparecendo as cabeças no interior das mãos e em cima dos pés, com as ponta saindo do outro lado. Os sinais eram redondos no interior das mãos e longos no lado de fora, deixando ver um pedaço de carne como se fossem pontas de cravos entortados e rebatidas, saindo para fora da carne. Também nos pés estavam marcados os sinais dos cravos, sobressaindo da carne. O lado direito parecia atravessado por uma lança, com uma cicatriz fechada que muitas vezes soltava sangue, de maneira que sua túnica e suas calças estavam muitas vezes banhadas no sagrado sangue. Infelizmente foram muito poucos os que mereceram ver a ferida sagrada do seu peito, enquanto viveu crucificado o servo do Senhor crucificado. [...] Pois tinha muito cuidado em esconder essas coisas dos estranhos, e ocultava-as mesmo dos mais chegados, de maneira que até os irmãos que eram seus companheiros e seguidores mais devotados não souberam delas por muito tempo.
Buscando a perfeição, Frei Francisco tinha por costume não revelar, senão a poucos, ou a ninguém, o seu principal segredo, temendo que a revelação lhe trouxesse alguma predileção por parte dos outros que resultasse em detrimento da graça que tinha recebido. Por isso guardava sempre em seu coração e repetia aquela frase do profeta: "Escondi tuas palavras em meu coração para não pecar contra ti".
Frei Francisco partiu para a eternidade no início da noite de 3 de outubro de 1226, sendo canonizado menos de dois anos depois. Biografado por vários de seus filhos espirituais, teve a vida divulgada em verso e em prosa até mesmo por tradição oral, em que a verdade e a lenda se entrelaçaram tão magnífica e pitorescamente que, ainda que alguns detalhes não correspondam minuciosamente à história da família franciscana, retratam muito bem o espírito do franciscanismo e de seu Fundador, o seráfico São Francisco de Assis, cuja comemoração litúrgica ocorre em 4 de outubro.
SÃO FRANCISCO DE ASSIS
(Escritos e biografias de São Francisco de Assis, Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano).
Petrópolis, Editora Vozes, 2000, 9ª edição.
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